espelho seu - uma análise de "Funny Games" (2007)
- Pedro Tomé
- 24 de nov. de 2020
- 7 min de leitura
Atualizado: 26 de nov. de 2020
O austríaco Michael Haneke chegou ao ápice do sucesso de crítica em premiadas obras como o belíssimo “A Fita Branca” (2009), o pouco conhecido “A Professora de Piano”(2001), o sucesso mundial “Amour (2012)” e o tensionado “Chaché” (2005), todos com uma mesma característica imperativa – a flexão inventiva da forma e da narrativa. Porém, foi com o incômodo longa-metagem “Funny Games” (1997), que Haneke encontrou o balanço quase-perfeito entre forma cinematográfica e mensagem a ser transmitida.
“(...) Este filme é uma reação a um certo tipo de cinema norte-americano, à sua violência, sua ingenuidade, a maneira com que este cinema brinca com seres humanos – em muitos destes filmes, a violência é transformada em produto de consumo” Assim, de maneira precisa, o multifacetado diretor descreve “Funny Games” – obra austríaca que exatamente 10 anos após sua estreia, em 2007, foi adaptada pelo próprio realizador à língua inglesa – agora contando com um elenco de consolidados atores hollywoodianos como Naomi Watts e Tim Roth. A fala a cima, então, vem de encontro com a subversão da filosofia de produção industrial norte-americana – maçante e repetitiva. O autor decide por uma regravação shot-for-shot, de planos e diálogos idênticos, mostrando um extremo nível de controle narrativo – a subversão vem de dentro da obra, de sua forma estética, de seu roteiro, e principalmente, de seu contexto - a repetição desenfreada de conteúdo no mercado cinematográfico dos EUA.
No Brasil, o título “Funny Games” foi traduzido para “Violência Gratuita” – oque pode gerar certo receio em seus possíveis espectadores, que já iniciam a experiência cinematográfica preparados para o pior, para o escatológico, o sangrento. Estes espectadores, já aviso neste momento, não encontrarão o que esperam. O longa-metragem abusa, sim, do termo que dá origem ao título verde-e-amarelo, porém de forma diferente.
A violência se faz presente desde os primeiros minutos do longa-metragem – logo na cena de créditos iniciais, nós, espectadores, somos apresentados à uma aparentemente feliz família típica norte-americana, que, ao som diegético da voz da soprano clássica Renata Tebaldi, viaja de carro. O calmante efeito sonoro da ópera italiana é, momentos depois, interrompido bruscamente pelo alto, não-diegético e agressivo som das guitarras destorcidas da banda de heavy-metal Naked City.
A violência então é apresentada através do choque instantâneo, do repentino susto no espectador. Mas esse é apenas o cartão-de-visita proposto por Haneke, que nos apresenta seus “antagonistas” Paul e Peter logos aos cinco minutos de filme, nos distanciado plano aberto do jardim dos vizinhos da família – distanciamento este que é maior do que o estado físico - no decorrer da sequência, Anna, a “mãe”, comenta com seu marido, George, que havia achado estranho o comportamento de seus vizinhos – este distanciamento é então, traduzido pelo enquadramento da cena. “(...) There’se someone here...”, assim Georgie, filho do casal, avisa a mãe (aos treze minutos) que alguém estranho está os visitando. Na porta da casa de veraneio da família está o jovem Peter, que com voz aveludada e serena, pede para entrar na casa – Anna permite. Peter pede repetitivamente 4 ovos. A violência então volta a se mostrar, dessa vez, através das falas passivas-agressivas de Peter, que mescla raiva e cordialidade com sua anfitriã. O mesmo acontece aos dezenove minutos, quando o também jovem Paul apresenta-se à Anna.
Logo em seguida, os antagonistas mostram suas reais intenções. Um sadístico jogo de entretenimento é proposto pelos jovens; apostam que no total de 12 horas matarão toda a família.
A primeira morte do filme é do cachorro da família, aos vinte e um minutos de filme - momento não mostrado plasticamente pelo diretor, ouve-se apenas latidos interrompidos de maneira brusca. A violência física só é exposta, propriamente, aos vinte e seis minutos, quando George dá um tapa na cara de Paul, pedindo-o que vá embora.
Violência gera violência.
A partir deste ponto, os antagonistas intensificam suas ações – Peter quebra a perna de George com um taco de golf – ato novamente não mostrado de maneira direta pelo diretor – vê-se apenas o objeto sendo arremessado e depois, George caído no chão. O diretor opta por jamais mostrar de maneira visualmente literal o ápice da violência física, as mortes. Quando Georgie, o filho do casal, é morto (01:04”00) o diretor decide por um sóbrio plano de Paul na cozinha, fazendo um lanche - ouve-se apenas um tiro e gritos ao fundo, gerando um enorme desconforto ao espectador. Na cena em que George, o pai, é morto (01:40’’07), um falso ponto-de-vista da vítima é criado com uso de um plano com Paul em contra-plongeé, apontando a espingarda para George.
O antagonista atira, mas o espectador não vê o que acontece com o já machucado pai. Por último, já na manhã seguinte, (01:44’12) quando Anna, a última sobrevivente, é morta – o autor opta por exibir o ato de Paul ao empurrá-la nas águas do rio. Porém, nós espectadores, não presenciamos seu afogamento e/ou subsequente morte. Haneke desafia seu espectador – convida-o à imaginar estas cenas, a estimular o lado senrorial, a sofrer sem ao menos ver. A violência física é, portanto, tratada pelo realizador como primeiro pilar de sustentação alegórica e subversiva da obra, mas não o único. A violência psicológica não vem só dos jovens antagonistas e suas ações contra a família, mas também do diretor perante seu público. A crítica à ambiguidade e ambivalência pós-moderna, “marca registrada” do século XXI, pode então ser encontrada no contraste (ou em sua falta) entre físico e psicológico.
O realismo na atmosfera fílmica e na construção dos personagens é outro ponto em que o longa-metragem acerta em sua forma estética; a direção de fotografia é extremamente naturalista, com planos relativamente afastados de seus objeto principais (não há planos “sangrados), e de câmera quase sempre estática, o que faz com que sua presença seja facilmente esquecida e passe desapercebida, aumentando a catarse do espectador na obra. O auxilio de planos prolongados e de pouquíssimos cortes também intensifica a imersão no filme – como na cena em que Anna, aos 01:06’03, logo após a morte de seu filho, levanta e arrasta-se pela sala, até se libertar das mordaças colocadas pelos jovens psicopatas.
O plano tem exatamente 10 minutos de duração, praticamente nenhuma movimentação de câmera e nenhum corte. O cinema industrial de berço estado-unidense, maior objeto de crítica da obra, ostenta características exatamente opostas às utilizadas por Haneke – planos curtos, com uso de gruas, travellings e steadycams, aliados à muitos cortes. A crítica continua.
Esta cena, aliás, contém outra grande crítica do diretor à indústria do entretenimento, e talvez, a mais poderosa da obra – a televisão da sala de estar. Este símbolo da indústria cultural e do sistema capitalista, culpado segundo pensadores da Escola de Frankfurt, pelo esvaziamento de sentido da arte e pela ultra-comercialização da violência e da sexualidade no entretenimento é usado pelo autor como alegoria máxima à critica ao deturpado poder da mídia como um todo. Anna, logo após a morte de seu jovem filho, arrasta-se, mesmo presa e amordaçada, até a televisão – e a primeira coisa que faz, é desliga-la.
A metáfora da televisão no capitalismo não permanece apenas por conta desta cena, mas também, na mais emblemática (e de maior cunho inventivo) cena do filme; a cena do controle-remoto (01:39’’10). Nesta sequência, Paul explica para Anna mais um de seus degenerados jogos – a protagonista teria de recitar uma prece à deus de trás para frente, e depois decidiria quando e com qual arma seu marido seria assassinado. Anna, então, rapidamente pega a espingarda que estava na mesa de centro da sala, e atira no peito de Peter, matando-o.
Paul grita, fica possesso, derruba a protagonista e procura algo desesperadamente pela sala-de-estar. Ele acha o que procura, o controle remoto da televisão; olha-o e aperta o botão “rewind” – rebobinando toda ação, voltando-a como se volta à cena de um filme que não entendemos direito. Tudo volta, de trás para frente, ao momento anterior à Anna atirar em Peter. Haneke desvencilha-se completamente de arquétipos do cinema, convenções clássicas narrativas, e lógicas dramáticas – ele mostra que, em sua crítica ao cinema como parte de uma indústria, há ainda mais espaços para declarações alegóricas sobre o poder do cinema em sua forma – colocando-o no patamar de senhor absoluto de qualquer obra, independente de sue público – todos somos reféns – justamente quando o espectador tem algum tipo de alívio na muito tencionada parte filme, quando “finalmente o mau morre”, tudo volta pra trás, tudo é mudado, a catarse é deixada de lado e ignorada completamente.
O antagonista Paul cria uma “segunda chance” para Peter - que dessa vez, permanece vivo.
A quebra da catarse é outro pilar de sustentação alegórica da obra; a metalinguagem é palavra-chave e permeia quase todos os momentos do longa-metragem. Por diversas vezes os antagonistas referem-se diretamente aos espectadores, subvertendo completamente o que é chamado no estudo da semiótica como a barreira entre o emissor de uma mensagem e seu receptor. Passados exatos 30 minutos de filme, Paul “ajuda” Anna na procura pelo cadáver de seu cachorro, e em determinado momento da sequencia, o jovem vira-se e olha diretamente para a câmera, sorrindo para o público que o assiste. Aos 41 minutos, Paul novamente vira-se para a câmera, olha-a diretamente e fala “(...) E vocês? Quem vocês acham que vai ganhar (o jogo)?”, perguntando diretamente a opinião do espectador.
A referencia ao próprio filme também é vista exatamente em 01:32’’55 – quando Paul fala para George e Anna que seu principal desejo é entreter a audiência, e novamente, em 01:34’’19, quando Paul mais uma vez vira sua cabeça para câmera, olha-a fixamente após ser confrontado por George e indaga o espectador do filme; “Vocês acham que já é o suficiente? Quero dizer, vocês querem o final de verdade, certo? Com um desenvolvimento plausível de plot? Não querem?” - talvez, a mais literal crítica da obra. O longa-metragem faz questão de construir uma realista atmosfera, para depois, subverte-la, quebra-la completamente.
“ (...) Para insultar os arrogantes e poderosos, quando ficam como cachorros dentro d’água no escuro do cinema”. desta forma o versátil realizador brasileiro Joaquim de Andrade, em certo momento de sua vida, quando perguntado sobre o porquê fazia cinema, discorreu. Tal afirmação define, de maneira excepcional, também a perfeccionista filmografia de Michael Haneke, e especificamente, "Funny Games"





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