horror pra dentro de si - uma análise de "Pânico" (1996)
- Pedro Tomé
- 24 de nov. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 1 de dez. de 2020
E se o horror, como um gênero, olhasse para dentro de si? E se um filme de terror tentasse criar um tipo diferente de vínculo entre público e obra, usando e abusando de autorreferencias? Foi respondendo perguntas como essas que o célebre cineasta norte-americano Wes Craven chegou ao apogeu comercial em sua hoje consagrada obra “A Nightmare on Elm Street” (1984), catapultando-o para o patamar de “mestre do terror”. Porém, foi com o audaz, metalinguístico e cultuado “Scream” (1996) que Craven encontrou o balanço quase perfeito entre a forma cinematográfica do gênero terror e mensagem a ser transmitida ao espectador. O longa-metragem, que rapidamente ganhou status fenômeno pop ao redor do mundo – transformou a máscara escolhida por seu diretor em um dos maiores ícones da historia do gênero.
“Scream” tem como seu principal pilar de sustentação dramática a premissa de se identificar como um filme de terror que discute filmes de terror – seus vícios de linguagem, seus lugares comuns, estereótipos e atmosfera fílmica. A quebra da catarse é outro pilar de sustentação da obra, dessa vez, alegórica; a metalinguagem é a palavra-chave e permeia quase todos os momentos do longa-metragem. Por diversas vezes os protagonistas referem-se à clássicas sequencias de filmes de terror, e suas obviedades.
“(…) A câmera não pode ser um instrumento de evocação ou descrição da realidade exterior, o autor necessita, como queria Bazin, ‘escrever diretamente em cinema…”’, é deste modo que o teórico da linguagem cinematográfica Jean-Claude Bernardet define a atuação da forma técnica no conteúdo audiovisual de um verdadeiro autor. Craven acerta, então, ao problematizar, sob nova luz, uma questão já indagada diversas vezes a história do cinema - a subversão encontra-se na forma, nos constantes diálogos sobre o gênero terror/horrror e no uso dos mesmos artifícios técnicos tanto criticados por seus personagens.
É interessante notar como tais artifícios ajudam Craven brincar com as expectativas do público ao logo do filme. Mais interessante ainda é notar que esse jogo com seu espectador começou antes mesmo do longa entrar em cartaz. Em 1996, Drew Barrymore (E.T) era uma grande estrela teen de hollywood, e sua presença no elenco de "Scream" gerou imensa repercussão na mídia norte-americana. A imagem da jovem atriz foi amplamente utilizada em peças de marketing, posters, e trailers. A lógica era, então, Barrymore como protagonista. E a imensa expectativa construída foi recompensada com aquilo que até então era impensável - Craven matará a personagem de sua maior estrela em exatos 11 minutos de filme, ainda na primeira sequência do longa. Começava ali uma relação de fascínio entre fãs do gênero e uma franquia que já dura 24 anos.
A linguagem teatral do acting e mise’en’scene na atmosfera dramática e na construção dos personagens é outro ponto em que o longa acerta em sua forma estética; a direção de fotografia é extremamente cautelosa – abusando de uma câmera que opera em planos de relativa imersão através de movimentos, o que faz com que sua presença seja facilmente esquecida e passe quase desapercebida, aumentado assim a catarse do espectador na obra. O auxílio de planos prolongados e pouquíssimos cortes também intensifica a imersão no filme - que em momento algum se propõe a ser um marco fotográfico.
Talvez seja pertinente a análise: o constante flerte entre calmaria e horror, a sedução do cidadão comum pertencente à uma época de dogmas cada-vez-menos disfarçados, no berço de um novo século, é mais um ponto em que o diretor acerta – uma sinfonia de ações transporta-nos por vias de um filme, que talvez com outros protagonistas, não se sustentaria. A recusa do realizador por enquadrar-se em um filo cinematográfico realista, beirando o que podemos chamar de um naturalismo antinaturalista, aproxima-se do fantástico, do lúdico. As desventuras de uma relutante anti-heroína, desta vez, apresentam-se de forma única, com cuidadosa curadoria estética comercial e contrastantes atos dramáticos quase teatrais.
Um jogo de experiências sensoriais é então proposto à quem estiver assistindo o longa-metragem. A demasiada calmaria nos primeiros terços de filme é substituída, então, por uma nova jornada sensorial. À medida em que a protagonista Sydney Prescott mostra-se cada vez mais amedrontada, a atmosfera de segurança passada por seu namorado, Billy Loomis, dá lugar à um dilacerante dominó do horror, embriagado na sexualização agressiva e a plastificada atmosfera romântica da obsessão. O descompasso, então, volta a ser posto sob o holofote – desarmonia essa que é traduzida pela pecaminosa jornada de seu antagonista.
O principal objetivo do então namorado de Sydney é homenagear e glorificar todas as principais franquias cinematográficas de assassinos no horror, subgênero que na década de 1990 havia caído em desuso. Filmes como “Halloween” (1971), “Nightmare on Elm Street” (1984) , “Friday The 13th” (1980) e “Texas Chainsaw Massacre” (1974) são citados ao longo da narrativa. O autor parte do princípio teórico que todos usamos máscaras metafóricas no dia-a-dia, suprimindo nossos obscuros desejos, e adotando uma imagem mais socialmente aceitável. Este é o caso de Billy Loomis – um indivíduo que mantém-se constantemente usando máscaras - finge ser algo que não é quando veste a alegórica máscara de namorado atencioso, e mostra sua real natureza quando veste fisicamente a máscara Ghostface. Tantas facetas levam-no, posteriormente, à morte.
Outro poderoso instrumento narrativo de Craven é a precisa tomada de decisões na trilha sonora – já de início tensionada – imperam os sons do dia-a-dia em meio à obscuras bandas sonoras originais, deixando o espectador inquieto. O detalhamento dos sons cotidianos e diálogos, aos poucos, dá lugar a pontuais (e marcantes) momentos em que a música dá suas caras – o terceiro ato da obra, ainda mais sombrio, abusa do carro-chefe do cinema de horror – a descompassada atmosfera de músicas perturbadoras.
Deve ser discutido também a existência da sequência “Scream 2”, e o subsequente surgimento da franquia “Scream”, totalizando 4 filmes ao longo de 20 anos. A discussão deve iniciar-se com o questionamento sobre a necessidade de uma continuação para o longa de 1996 - o porquê de mais uma história com estes personagens.
“Scream” consolidou-se dentro de sua proposta e basta-se por si só na discussão sobre o horror. Porém, discutir o gênero sem falar de sequências, é impossível – gênero este que consolidou-se através de grandes franquias e personagens que se enraizaram no inconsciente coletivo de milhares de pessoas ao longo de diversas continuações e reboots. O diretor opta brincar com a noção de que toda continuação de horror seria necessariamente mais fraca que seu antecessor - apresentando um novo assassino, porém de mesma alcunha e vestimentas.
A sequência lançada já no seguinte à seu antecessor continua a tradição da metalinguagem, e a leva todo um novo patamar – agora há, dentro do filme, um longa-metragem sobre os acontecimentos do filme anterior. Ou seja, há um filme de terror sobre um filme de terror sobre filmes de terror.
O longa-metragem pega carona na grande febre popular de meados da década de 90 por grandes julgamentos criminais, como o histórico caso de OJ Simpson. Cotton Weary, o amante mãe de Sydney, que fora preso injustamente por seu assassinato no primeiro filme, agora fora inocentado e quer, de qualquer maneira, seus 15 minutos de fama. O autor, então, critica o desregulado culto norte-americano pela imagem, e a tênue linha entre público e privado na vida de um indivíduo.
Últimos pontos devem ser discutidos: a estruturação dramática proveniente da metalinguagem e a ascensão da mulher no âmbito político-social estão, inevitavelmente, interligados, uma vez que, a negação a valores tradicionais burgueses da jornada (quase sempre masculina) do herói, também é, de certa maneira, a negação de paradigmas sexistas cristalizados na práxis-vital da sociedade ocidental moderna e sua produção cultural. Sydney Prescott enfrenta - e derrota - ao longo de 4 filmes, diversas figuras masculinas que tentam derrubá-la física e socialmente. Craven acerta ao dar ênfase, de maneira sutil, à batalha diária de todas as mulheres contra o retrógrado pensamento patriarcal, usando como adorno ilustrativo, o constante triunfo físico e mental do feminino, na figura de Sydney, sobre autocentrado, cruel e perverso universo masculino.
O diretor acerta, também, ao não pecar por uma forma simplista, ao contrário, abusa de extravagantes movimentos de câmera em gruas, combinados à inteligentes críticas sarcásticas e um humor bem-dosado.
“Scream” pode ser considerado, então, como último grande filme comercial de horror do século XX.





Comentários