dentre outros tantos - uma análise de "Historia de la Meva Mort" (2013)
- Pedro Tomé
- 24 de nov. de 2020
- 4 min de leitura
Atualizado: 30 de nov. de 2020
Descompasso é a palavra chave quando se fala na forma incomum do longa-metragem "Historia de la Meva Mort", do cineasta catalão Albert Serra, dotado de uma inegável assinatura cinematográfica: a execução de narrativas centralizadas em celebres personagens já cristalizadas no imaginário comum. Em sua primeira grande empreitada na cadeira de direção com "Quixotic/ Honor de Cavelleria", o ousado realizador nos ofereceu uma diferente abordagem à um dos mais queridos personagens da literatura mundial, Dom Quixote de La Mancha. Em uma de suas mais recentes obras, "La Mort de Louis XIV", uma belíssima tomada nos últimos dias do rei-sol da frança.
Contudo, ambas as obras diferenciam-se de forma imperativa deste que é seu segundo longa-metragem; Mais uma vez populares personagens centralizam-se na narrativa, porém, Serra opta por uma improvável combinação: a (nem tão) charmosa decadência de um já envelhecido Giacomo Casanova e a quase freudiana presença libertina e pulsante de um vil Conde Drácula.
Ambientado na típica atmosfera hipnotizante do século XVIII, o longa-metragem abusa do naturalismo descompassado do dia-a-dia de uma figura que não dispõe do mesmo vigor físico que um dia possuiu - Casanova, neste momento de sua vida, leva seus dias de forma quase metódica - come, lê, escreve, reflete sobre alquimia ou religião, encontra-se com mulheres, relembra momentos de seu passado com ilustres figuras como Voltaire e divide conversas com Pompeu (seu serviçal e sempre-presente "companheiro"). "(…) Eu não me interessava por Dracula de forma alguma. De fato, tentei ler 'Dracula de Bram Stoker' e simplesmente não consegui. Achei muito ruim e chato." . Assim, de forma descontraída, Albert Serra descreve sua relação com Drácula, uma das mais difundidas figuras fantásticas da história mundial, e nesta obra, catalizador de uma narrativa que até certo momento apresenta-se de forma linear, naturalista e prolongada.
Giacomo Casanova e o conde Drácula, partilham, talvez, de mesmos temas, similares pensamentos sobre desejo, prazer e a intensa relação com a noite - é deste ponto de partida que o realizador catalão toma suas decisões narrativas. Quase três quartos do longa-metragem passam-se e o espectador é apresentado, apenas, à vida mundana de Casanova - porém, o último terço revela algo diferente, subversivo à linguagem já estabelecida até o momento.
A construção da forma fílmica da obra revela o apreço de Serra pela subversão de jargões estéticos e narrativos das formas clássicas do cinema; Cada plano tem sua função, interdependente do plano anterior, a falta de naturalidade verbal pela escolha de utilização de não-atores ("marcar registrada" do diretor) aumenta o desconforto do espectador em uma atmosfera supostamente confortável. Planos alongados e demorados, de pouquíssimos cortes permitem uma imersão quase total no cotidiano desta figura.
A partir de uma analise da relação de Casanova com seus subordinados, é possível observar um evidente distanciamento, até, talvez, certo desprezo.
Tal afirmação pode ser observada aos 00'37''02 de filme, quando o patrão defeca em um trono em seu aposento e, logo em seguida, convoca Pompeu para limpa-lo. Satisfeito, o protagonista ainda gargalha, pleno, enquanto o serviçal observa seu ''robusto presente''.
O campo do silêncio é outro grande trunfo da narrativa. Muitas das interações dos personagens são externadas e interpretadas por olhares e movimentos faciais. Os diálogos, em grande parte improvisados, são em diversas vezes, curtos/diretos e extremamente pausados.
É possível notar a intensa presença de barulhos externos a conversações - como o som de árvores contra-o-vento, animais em seu dia-a-dia e ruídos provindos dos próprios personagens da, principalmente pelos alimentos mastigados por Casanova. O espectador é forçado a ouvir, por exemplo, detalhados sons de mastigação do protagonista ao longo da metragem da obra.
A narrativa trata com muita sutileza o campo do silencio. Muitas das interações e reações dos personagens são interpretadas por olhares e ações faciais. Os diálogos, que poucas vezes ocorrem, são curtos e pausados. É possível notar a grande e intensa presença de barulhos causados por sons naturais, como o som de arvores e animais, e ruídos provocados pelos próprios personagens, principalmente pelos alimentos mastigados. O diretor faz questão de que contemplemos e ouvimos em alto e bom som o protagonista comendo e mastigando cada alimento. Contemplação é o termo-chave para esta constatação. O longa possui um lento ritmo As cenas foram filmadas de modo a não economizar as ações dos personagens, fator que fica nítido na montagem - realizada da forma pouco dinâmica.
Uma jogo de experiências sensoriais é então proposto à quem estiver assistindo o longa-metragem. A demasiada calmaria nos primeiros terços de filme é substituída, então, por uma nova jornada sensorial. À medida em que o personagem do conde Drácula mostra-se cada vez mais nitidamente, a metáfora da pecaminosa floresta apresenta-se; o coração da natureza, a floresta, de crescimento desenfreado, simboliza um novo clima para a obra - fora das delimitadoras paredes de seu castelo, longe de convenções sociais de uma era deturpada. A calmaria absoluta, em muitas vezes demasiada, dá lugar à um dilacerante dominó do horror, embriagado na sexualização agressiva e plastificada atmosfera romântica.
O descompasso, então, volta a ser posto sob o holofote – desarmonia essa que é traduzida pela pecaminosa jornada de Drácula na narrativa – conforme o protagonista aproxima-se de seu suposto antagonista, a noite, a escuridão vil, também.
A sexualidade, a morte e a violência tomam conta daqueles que viriam a ser os últimos dias de Casanova, o desmembramento estilístico é traduzido na narrativa – o orgasmo estético é alcançado através de repetições desconstruídas - em 148 minutos, dois dos mais libertinos e libidinosos personagens da história apresentam dois lados de uma mesma moeda, mesmo que seu encontro demore. O diretor acerta, então, ao problematizar sob nova luz, uma questão já problematizada diversas vezes no campo da linguagem cinematográfica, a subversão encontra-se na forma, nos diálogos quebrados, nas pistas dadas sobre este – nunca dito – Drácula.
Outro fator que deve ser ressaltado é a pontual presença da trilha sonora – de início, tímida, discreta – imperam os sons do dia-a-dia, como o inegável incômodo dos detalhes de cada som nas mordidas de Casanova em suas refeições – deixando o espectador tensionado. O detalhamento dos sons cotidianos e diálogos, aos poucos, dá lugar a pontuais momentos em que a música dá suas caras – o terceiro ato da obra, mais sombrio, usa do carro-chefe do cinema de horror - a música, tencionada, tenciona o espectador.
As desventuras de um histórico anti-herói sedutor, desta vez, apresentam-se de forma única, de cuidadosa curadoria estética, e contrastantes atos quase teatrais.





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